Inconsciente não. Suceptível
A impressão que eu tenho é que é uma corrida. Daquelas de revezamento com obstáculo. Quatro corredores e nenhum time concorrente, como se competissem entre eles mas com a consciência de que precisam uns dos outros.
Dá a partida. Corre o primeiro, cheio de energia de quem ainda não está cansado. E nem pretende se deixar vencer por ele eventualmente. Pois bem, ele corre. Corre, corre, e tropeça no seu obstáculo. Mas nem o próprio obstáculo está lá muito no clima de barrar qualquer coisa, e logo cai. O corredor, que não tem consciência da personalidade do obstáculo (a percepção é minha, portanto os meus objetos têm o direito de serem temperamentais), acha que seu vigor de iniciante tem o poder de pôr no chão qualquer coisa que venha a sua frente. Num dado momento, ele até acredita que pode vencer a corrida sozinho. Mas, enquanto o corredor A se vangloria em cima da boa vontade do obstáculo, o corredor B pega o bastão e começa a sua corrida.
O atleta B então começou a correr. Não se sabe direito o que motivava B a competir, se era o que o esperava além do obstáculo ou se o simples gosto de vencê-lo e correr em direção a outro. B correu com raça, não a raça de um time que está perdendo e só tem a moral como impulso, mas sim a raça de alguém que gosta de fazer as coisas bem feitas - mesmo que elas tenham um significado pequeno. Pois bem, foi B correndo, empolgado com o desafio. Na mesma empolgação que foi, bateu de frente com a barreira e voltou. Mas ele foi perseverante sem incomodar o obstáculo; e este ficou lá, posando de imaculado e parecendo cada vez mais desafiador ao corredor B. E foi assim que B conquistou o obstáculo, apesar de ter literalmente deixado o bastão cair. Com o perdão do uso mal feito da expressão.
E lá foi o corredor C, aparentemente despretencioso, pegar o bastão que lhe permitiria correr. Até porque, pelo consenso universal do mundo dos atletas de corrida, correr sem o bastão não tinha o menor sentido. Ele, entretanto, não tinha ganas de transpor os obstáculos, e sim de aproveitar o exercício. Correu tão tranquilo que nem o obstáculo se deu ao trabalho de interromper. [O que eu vou dizer agora pode parecer óbvio, mas precisa ser dito para o meu próprio entendimento] Se não há obstáculo, não há como vencer um obstáculo que não existe. Então, por desprentenção tanto do corredor quanto da barreira, a corrida do atleta C seria inútil se não fosse pelo suposto prazer de C em correr.
Não se sabe ao certo se C entregou ou se A roubou o bastão de C, mas o fato é que lá foi A, com a energia de uma criança descendo para o recreio, continuar a corrida. O obstáculo dessa vez se assustou, A parecia determinado a transpor o obstáculo a qualquer custo. Ele, que tinha ensaiado uma volta à corrida antes mesmo de B começar de fato a correr, não se deixaria enganar pelo prórpio brio dessa vez. E o obstáculo lá, sabendo o que o esperava e sem saber direito que postura adquirir; A ia se aproximando e ele continuava do mesmo jeito. Resolveu então fazer o que um obstáculo deveria fazer: ser um empecilho. E foi. Em vão, porque o peso da determinação de A contra a insegurança da pobre barreira não deixou dúvidas do que aconteceu. E o obstáculo, temperamental e decidido no começo, entrou numa crise existencial: como pode uma barreira não atuar como barreira e continuar sendo uma barreira? Vai ver o obstáculo, coitado, apesar de ter simpatizado com B, estava se tornando arbitrário e escolhendo um favorito.
Mas A tropeçava no seu próprio espelho mais uma vez. E, enquanto isso, o obstáculo ia se acalmando e vencendo a crise, e voltando tão obstáculo quanto no começo. Dessa vez a balança pesou para o outro lado: A estava confiante demais e atento de menos; o obstáculo 100% obstáculo e esquecendo inclusive do seu favoritismo.
Essa parte da corrida foi desgastante, por assim dizer, tanto para o corredor A quanto para o obstáculo. Mas enquanto para A o episódio o tinha deixado feliz pela conquista de um obstáculo (mesmo sendo barrado pelo seguinte), para a barreira as consequências não foram assim tão claras e nem tão imediatas. Aliás, imediatas foram, mas a percepção delas é que não foi. O que acontece é que B tomou o bastão no meio dessa confusão e foi correndo. Não foi a raça de B que cresceu, ou seus ideiais e gostos no esporte que mudaram: ele simplesmente encontrou uma barreira diferente. Um obstáculo frívolo, sem razão de ser. Que estava ali só por estar, só para constar como obstáculo. Mas um obstáculo com essa postura e obstáculo nenhum era na prática a mesma coisa. Talvez, para alguns espectadores, seja importante a presença do obstáculo, mas não fazia diferença se o corredor não teria nenhum esforço para transpô-la. Arrisco dizer que, para o corredor B e toda a sua empolgação de atleta, o obstáculo simplesmente se jogou. Porque achou que devia, porque sentiu que foi obstáculo demais para o corredor A e resolveu balancear, ou apenas porque queria não ser barreira por opção para variar. Ou se jogou porque se jogou, e ponto final. Vai ver é legal cair. E então o obstáculo se jogou. É de se presumir que B tenha ficado desmotivado por um obstáculo que se deixa vencer, mas os corredores não podem se controlar: vencer um obstáculo é sempre algo muito prazeroso. Pode ser que depois B venha a perder o gosto pela corrida, já que gosta de vencer barreiras pelos próprios méritos.
B venceu uma, continuou correndo. Outra, outra e mais outra. Aí o obstáculo, aflorando novamente seus traços de um objeto incrivelmente genioso, se fez obstáculo de novo. Sem maiores esforços, sem pender para mais ou menos difícil, o obstáculo voltou a ser um obstáculo em essência. E isso lhe pareceu certo. Acho que B era o corredor mais misterioso, difícil de entender. É o lógico que o esforço (nulo) que B fazia para tranpor obstáculos auto-transponíveis não foi suficiente para vencer o obstáculo como obstáculo. E ele não tentou muito também, provavelmente pouparia seus esforços para uma parte mais interessante da corrida, quando estivesse perto do final.
Sereno e oportunista como sempre, veio C e cordialmente pegou o bastão da mão do visivelmente satisfeito e futurista B. O obstáculo ficou tranqüilo: C não tinha gosto por ele mesmo, então, nessa parte da corrida, preocupações com postura e crises existenciais estariam fora. C veio dessa vez como da outra: preocupado em correr e não em vencer obstáculos. Ele acreditava que, fazendo uma corrida pacífica e adequada, os obstáculos não seriam necessários e a vitória viria de uma forma ou de outra. Mas, como C tinha aumentado o ritmo da corrida, o obstáculo se assustou e se colocou bastante obstáculo. Firme, decidido. Só que não foi necessário, C não foi barrado, ele sequer tentou transpor a barreira. Calmamente, abandonou o bastão na pista e esperou o próximo corredor apanhá-lo. C estava satisfeito com a corrida.
Veio A. No fundo no fundo, A divertia o obstáculo. Os dois se desfiavam: quanto mais A tentava, mais o obstáculo gostava de barrar, e quanto mais o obstáculo barrava, mais A queria tentar. Claro que, para o funcionamento dessa "relação corredor/obstáculo" funcionar, havia de serem feitas concessões de um lado ou de outro, de vez em quando. E foi assim que o obstáculo retomou seu favoritismo e tornou a "embarreiragem" uma diversão para ambos, e não um obstáculo na corrida. A sabia que iria chegar, apesar dos assim chamados obstáculos. Por um longo pedaço de pista foram os dois se divertindo, até que novamente houve uma discrepância de objetivos. Nenhuma corrida deveria ser entregue assim tão fácil - ainda mais para um corredor tão presunçoso -, e o obstáculo sabia disso. Mas, por outro lado, o corredor A estava tão certo de que venceria que perdeu o limite da brincadeira e, no momento em que percebeu que o obstáculo não entregaria a corrida, resolveu vencê-la de qualquer forma. O obstáculo não suportou uma arrogância desse tamanho, e voltou a ser obstáculo. Mas dessa vez, não apenas um obstáculo, e sim praticamente uma impossibilidade. A e seu orgulho ferido, então, abandonaram a corrida.
Quando o obstáculo achou que voltaria B (já que A tinha abandonado e C raramente dava sinais de espírito competitivo), veio o corredor D. Esperto, estava assistindo a corrida sentado, tomando água e descansando, como um jogador de futebol que espera a bola na cara do gol e leva sempre todos os méritos. O obstáculo não conhecia D, tampouco conhecia a si próprio depois de tantos comportamentos diferentes se adaptando aos outros corredores. Mas apesar de estar ainda indignada pelo desinteresse repentino de B pela corrida, o obstáculo se encantou por D. Não se podia negar, D era um corredor inteligente. D lhe inspirava confiança. E então o obstáculo ficou, deixando D transpô-lo da maneira que lhe parecia melhor. O obstáculo conheceu tipos marcantes de corredores, que o moldaram até ele adiquirir a forma (ainda flexível) como encontrou D. De todos os corredores, D foi o que venceu mais barreiras e correu a maior distância. Mas o tempo acabou. Os telespectadores, já cansados, abandonaram as arquibancadas, e, apesar de D ignorar qualquer tipo de platéia (ao contrário exato de A), não havia como continuar a corrida com o tempo estourado. D chegou a ver o final, a linha de chegada, mas o obstáculos, bem como toda a pista, se retiraram da cena.